UMA BREVE ANÁLISE SOBRE ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA

 


INTRODUÇÃO

A palavra significa estudo do homem. Tem certa variedade de uso, alguns dos quais importantes para a teologia e filosofia.
1. Ciência da antropologia. Esta ciência estudo o homem como um organismo biológico e como um ser cultural, pelo que há duas divisões principais na antropologia: (a) Antropologia física, que aborda o que o homem era e é como um animal; (b) antropologia cultural, que trata sobre o que o homem tem descoberto e inventado, aprendido e transmitido, como um ser social.
A antropologia física é um ramo da ciência natural, que tem várias subdisciplinas:
a. Estudo das origens, ou antropogênia, que inclui todas as considerações do processo evolutivo, utilizando‑se das ciências geológicas e biológicas.
b. Somatologia, o estudo dos caracteres físicos das raças e sub-raças.
c. Antropogeografia, que faz a distribuição geográfica das raças.
d. Psicologia racial; que faz o estudo das diferenças entre as raças, no terreno psicológico.
e. Fisiologia racial e bioquímica.
f. Anatomia comparada à morfologia.

A maioria das subdisciplinas não interessa a filosofia ou a teologia, embora a questão das origens traga a tona o problema da evolução, bem como o problema das origens, em geral. Ademais, temos o problema geral da identidade do homem. Muitos antropólogos vêem-no apenas como um animal, mas a teologia muito tem a dizer sobre isso, não vendo o homem apenas em seu corpo físico. Os pais alexandrinos criam que o homem real, a alma, tem uma história anterior ao corpo físico. Se isso for verdade, então a antropologia só estuda o veiculo físico do homem e sua vida terrena, mas não sua a verdadeira origem.
A antropologia cultural tem as seguintes subdivisões:
a. Lingüística, estudo comparativo dos idiomas.
b. Tecnologia, estudo comparativo das invenções materiais, antigas a modernas.
c. Arqueologia da pré‑história, o estudo dos remanescentes de artefatos humanos, primeiras indústrias, etc.
d. Antropologia social, estudo comparativo dos costumes, tradições, organizações sociais, moral, governo, família, comunidade e economia.
O que interessa à filosofia e à teologia, dentro da antropologia cultural, centraliza‑se em torno da ética. A maioria dos antropólogos defendem o chamado relativismo cultural, isto é, a idéia que cada cultura desenvolve seus próprios conceitos éticos, dependendo das forças que atuam ali. Em aplicações extremas, qualquer padrão discernível de certo e errado se perdem, quando se aceita que uma cultura é tão boa quanto outra, ou que aquilo que é bom para uma cultura, não é necessariamente bom para outra. Assim fazendo, terminamos com muitos padrões de conduta moral, sendo aprovados ate mesmo os sacrifícios humanos enquanto que o adultério e a promiscuidade são socialmente sancionados.
2. Antropologia Filosófica. Essa estuda o conhecimento filosófico do homem. A filosofia estuda o homem, procurando perscrutar mais fundo do que aquilo que a dito pela ciência pura. Sistemas filosóficos como a fenomenologia, o existencialismo e o personalismo, geralmente são considerados como representantes dessa forma de antropologia. Isso, porem, é muito restritivo, porque qualquer filosofia que tente dizer algo sobre um homem, ou sobre a humanidade, além daquilo que a ciência estipula sobre seu corpo físico, é uma forma dessa antropologia filosófica. Portanto, a metafísica, a epistemologia, a ética, tudo tem algo a dizer sobre essa área. A própria antropologia parece ter sido termo cunhado por Aristóteles, em sua obra Ética. Ele o usou para descrever o homem dotado de mente nobre, não dado a maledicência a nem a jactância. Aquele que assim fazia era um antropólogo, isto é, falava sobre o homem, ou seja, sobre si mesmo.
3. Antropologia teológica e doutrina do homem, mormente no que tange a Deus, a sua origem, a sua natureza presente, atividade, deveres a destino. A teologia ensina‑nos que o homem foi criado para relacionar‑se com Deus, para participar de seus propósitos, a finalmente, para compartilhar da natureza divina (II Pedro 1:4), tal como originalmente foi criado à imagem de Deus. O homem desfigurou essa imagem, e a redenção tem por finalidade restaurá‑la, mas também maximiza‑la, por meio da criação do homem espiritual, uma realização das dimensões espirituais. Na antropologia teológica, o homem é um ser transcendental, ou pelo menos, esta destinado a sê‑lo.

A DOUTRINA DO HOMEM
Gênesis 5.2 descreve especificamente que Deus escolheu um nome que se aplicaria à raça humana como um todo.
Quero deixar claro que não estou argumentando aqui que devemos sempre imitar os modelos de discurso bíblico, ou que seja errado usar às vezes termos neutros quando nos referirmos a raça humana, mas sim que o fato de Deus ter ele mesmo escolhido o nome, segundo o relato de Gênesis 5.2, indica que o uso de "Homem" quando se representa toda a raça é uma escolha boa e bastante apropriada, algo que não devemos evitar. A questão teológica nos mostra o fato de que há liderança ou chefia masculina na família desde o principio da criação. O fato de Deus não ter decidido chamar a raça humana de "mulher”, mas de "homem", provavelmente traz alguma relevância quanto à compreensão do plano original de Deus quanto aos homens e quanto às mulheres. É claro que essa questão do nome que usamos quando nos referimos a raça não é o único elemento dessa discussão, mas é um deles, e o nosso uso da linguagem nessa questão tem de fato alguma importância na discussão dos papeis masculinos a femininos atualmente.

POR QUE O HOMEM FOI CRIADO?

Deus não precisava criar o homem, mas nos criou para a sua própria glória.
Deus não precisa de nós nem do restante da criação para nada; porem nós e o restante da criação o glorificamos com alegria.
Deus não nos criou porque precisasse da comunhão de outras pessoas. Deus não precisava de nós por motivo nenhum.
No entanto, Deus nos criou para a sua própria glória. Na analise da independência divina, observamos que Deus se refere aos seus filhos e filhas das extremidades da terra como aqueles "que criei para minha gloria"(Is. 43.7; Ef. 1.11‑12). Portanto, devemos fazer "tudo para a gloria de Deus" (1Co. 10.31).
Esse fato garante a relevância da nossa vida. Percebendo que Deus não precisava nos criar, e que não precisa de nós para nada, poderíamos concluir que nossa vida não tem a menor importância. Mas as Escrituras nos dizem que fomos criados para glorificar a Deus, indicando que somos importantes para o próprio Deus. Essa e a definição final da verdadeira importância ou relevância da nossa vida: se somos de fato importantes para Deus por toda a eternidade, então que maior medida de importância ou relevância poderíamos querer?
Qual o nosso propósito na vida? Nosso propósito deve ser cumprir a meta para que Deus nos criou: glorificá‑lo. Quando falamos com respeito ao próprio Deus, eis ai um bom resumo do nosso propósito. Mas quando pensamos nos nossos próprios interesses, fazemos a feliz descoberta de que devemos nos alegrar em Deus a encontrar prazer no nosso relacionamento com ele. Jesus disse: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundancia" (João 10.10). Davi diz a Deus: "Na tua presença ha plenitude de alegria, na tua destra, delicias perpetuamente" (Sl. 16.11). Ele anseia habitar na casa do Senhor para sempre, "para contemplar a beleza do SENHOR" (Sl. 27.4), e Asafe brada: Quem mais tenho eu no céu? Não há outro em quem eu me compraza na terra. Ainda que a minha carne e o meu coração desfaleça, Deus é a fortaleza do meu coração e a minha herança para sempre (Sl. 73.25‑26).
Acha‑se plenitude de alegria no conhecer a Deus e no deleitar‑se com a excelência do seu caráter. Estar na sua presença, desfrutar da sua comunhão, a benção maior do que qualquer coisa que se possa imaginar.
Quão amáveis são os teus tabernáculo, SENHOR dos Exércitos!
A minha alma suspira e desfalece pelos átrios do SENHOR;
o meu coração e a minha carne exultam pelo Deus vivo!
Pois um dia nos teus átrios vale mais que mil (Sl. 84.1‑2, 10).
Portanto, a atitude normal do cristão é alegrar‑se no Senhor a nas lições da vida que ele nos da (Rm. 5.2‑3; Fp. 4.4; 1Ts. 5.16‑18; Tg. 1.2; lPe. 1.6, 8).
Dizem‑nos as Escrituras que, quando glorificamos e desfrutamos de Deus, ele se alegra conosco. Lemos: "Como o noivo se alegra da noiva, assim de ti se alegrará o teu Deus" (Is. 62.5), e Sofonias profetiza que o Senhor "se deleitara em ti com alegria; regozijar‑se‑á em ti com júbilo. Os que estão entristecidos por se acharem afastados das festas solenes, eu os congregarei" (Sf. 3.17‑18).
Essa compreensão da doutrina da criação do homem traz resultados bastante práticos. Quando percebemos que Deus nos criou para glorificá‑lo, e quando passamos a agir a fim de cumprir esse fim, então começamos a experimentar uma intensidade de alegria no Senhor que antes não conhecíamos. E quando acrescemos a isso a compreensão de que o próprio Deus se deleita com a nossa comunhão com ele, nossa alegria se torna "inexprimível e plena de glória celeste" (1Pe. 1.8).
Alguém pode objetar que é errado que Deus tenha criado o homem em busca de glória para si. Certamente é errado que os seres humanos busquem glória para si, como vemos no dramático exemplo da morte de Herodes. Depois de orgulhosamente aceitar o clamor da multidão, "É voz de um deus, e não de homem!" (At 12.22), "no mesmo instante, um anjo do Senhor o feriu, por ele não haver dado glória a Deus; e, comido de vermes, expirou" (At 12.23). Herodes morreu por ter se apropriado da glória de Deus, glória que Deus merecia, não ele.
Será que ha alguém que mereça glória mais do que ele? Certamente não! Ele é o Criador, ele fez todas as coisas, e ele merece toda a glória. Ele é digno de receber glória.
Paulo exclama: Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amem! (Rm 11.36). Quando passamos a apreciar a natureza de Deus como o Criador infinitamente perfeito que merece todo louvor, nosso coração então não descansa enquanto não damos glória de todo o nosso coração, alma, entendimento e força (Mc 12.30).

O HOMEM A IMAGEM DE DEUS

De todas as criaturas que Deus fez, de uma delas, o homem, diz‑se ter sido feita "a imagem de Deus"." Que isso significa? Podemos usar a seguinte definição: o fato de ser o homem imagem de Deus significa que ele é semelhante a Deus e o representa.
Quando Deus diz: "Façamos o homem a nossa imagem, conforme a nossa semelhança" (Gn. 1.26), isso significa que ele pretende fazer uma criatura semelhante a si. As palavras hebraicas que exprimem "imagem" (selem) a "semelhança" se referem a algo similar, mas não idêntico. A palavra imagem também pode ser usada para exprimir algo que represente outra coisa.
Os teólogos gastaram muito tempo tentando especificar uma característica do homem, ou bem poucas delas, em que se vê primordialmente a imagem de Deus. Alguns já cogitaram que a imagem de Deus consiste na capacidade intelectual do homem, outros no seu poder de tomar decisões morais e fazer escolhas voluntárias. Outros conceberam que a imagem de Deus era uma referência a pureza moral original do homem, ou ao fato de termos sido criados homem e mulher (Gn. 1.27), ou ao domínio humano sobre a terra.
Dentro dessa discussão, melhor seria concentrar a atenção primeiramente nos significados das palavras "imagem" e "semelhança". Como já vimos, esses termos tinham significados bastantes claros para os primeiros leitores. Quando nos damos conta de que as palavras hebraicas que exprimem "imagem" e "semelhança" simplesmente informavam aos primeiros leitores que o homem era semelhante de Deus, e em muitos aspectos representa Deus, vemos controvérsia acerca do significado de "imagem de Deus" e a busca de um significado excessivamente estreito a especifico. Para os primeiros leitores, Gênesis 1.26, "Façamos o homem a nossa imagem, conforme a nossa semelhança", significava simplesmente: Façamos o homem como nós, para que nos represente.


A CRIAÇÃO DO HOMEM

O fato de ser o homem a imagem de Deus significa que o homem é como Deus nos seguintes aspectos: capacidade intelectual, pureza moral, natureza espiritual,domínio sobre a terra, criatividade, capacidade de tomar decisões éticas e imortalidade.
De fato, na leitura do restante da Bíblia, percebemos que a compreensão plena da semelhança do homem a Deus, exigiria plena compreensão de quem é Deus no seu ser e nos seus atos, e uma plena compreensão de quem é o homem e o que fez. Quanto mais sabemos sobre Deus e o homem, mais semelhanças reconhe cemos, e mais plenamente compreendemos o que as Escrituras querem dizer ao afirmar que o homem existe a semelhança de Deus. A expressão se refere a todo aspecto em que o homem é como Deus.
Essa compreensão do que significa ter sido o homem criado à imagem de Deus e reforçada pela similaridade entre Gênesis 1.26, onde Deus declara a sua intenção de criar o homem a sua imagem e semelhança.
Também somos superiores aos anjos, que não se casam nem geram filhos nem vivem na companhia dos filhos e filhas remidos de Deus.
No próprio casamento, espelhamos a natureza de Deus no fato de os homens e as mulheres gozarem de igualdade de importância mas diversidade de papeis, desde que Deus nos criou. O homem é como Deus no seu relacionamento com o restante da criação. Especificamente, o homem recebeu o direito de reger a criação, e quando Cristo voltar receberá autoridade para julgar os anjos (1Co 6.3; Gn. 1.26, 28; Sl. 8.6‑8).


A QUEDA DO HOMEM

O homem caiu no engano, suas palavras já não glorificam continuamente a Deus; seus relacionamentos muitas vezes são controlados pelo egoísmo, já não pelo amor.
Embora o homem ainda seja a imagem de Deus, em cada aspecto da vida alguns elementos dessa imagem foram distorcidos ou perdidos. Em suma, "Deus fez o homem reto, mas ele se meteu em muitas astúcias" (Ec. 7.29). Permanecemos, então, a imagem de Deus ainda, somas como Deus e ainda representamos a Deus, mas a imagem de Deus em nós esta distorcida; não somos mais plenos em Deus, como éramos antes do surgimento do pecado.
Portanto é importante compreender o pleno significado da imagem de Deus, não pela observação de como as seres humanos vivem hoje, mas pelas indicações bíblicas da natureza de Adão e Eva quando Deus os criou e quando tudo o que Deus criára era "muito bom" (Gn. 1.31). A verdadeira natureza do homem à imagem de Deus também se revelou na vida terrena de Cristo. A plena medida da excelência da nossa humanidade só se verá novamente na terra quando Cristo voltar e tivermos recebido todos os benefícios da salvação que ele conquistou para nos.
A redenção em Cristo é a recuperação gradual da imagem de Deus. É animador abrir o Novo Testamento e ver que nossa redenção em Cristo significa que podemos, mesmo nesta vida, gradualmente crescer cada vez mais. Por exemplo, Paulo diz que coma cristãos temos uma nova natureza, que "se refaz para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou" (Cl. 3.10). À medida que vamos crescendo no verdadeiro conhecimento de Deus, da sua Palavra e do seu mundo, começamos a pensar cada vez mais os pensamentos que o próprio Deus tem. Dessa forma somas refeitos "para o pleno conhecimento" e nos tornamos mais semelhantes a Deus no nosso pensar. "somos transformados, de glória em glória, na sua própria imagem.
Ao longo desta vida, à medida que crescemos em maturidade cristã, aumenta a nossa semelhança a Deus. Mais especificamente, nos vamos tornando cada vez mais semelhantes a Cristo na nossa vida e no nosso caráter. De fato, Deus nos redimiu para que sejamos "conforme a imagem de seu Filho" (Rm. 8.29), tendo assim exatamente o mesmo caráter moral de Cristo.
Na volta de Cristo, a completa restauração da imagem de Deus. A admirável promessa do Novo Testamento que, assim coma somos hoje como Adão sujeitos a morte e ao pecado), também seremos coma Cristo no futuro moralmente puros, jamais sujeitos a morte de novo. "Assim como trouxemos a imagem do que é terreno, devemos trazer também a imagem do celestial" (1 Co. 15.49)."A plena medida da nossa criação a imagem de Deus não se vê na vida de Adão, que pecou, nem na nossa própria vida hoje, pois somos imperfeitos. Mas o Novo Testamento enfatiza que o objetivo de Deus ao criar o homem à sua imagem se realizou completamente na pessoa de Jesus Cristo, o qual é a imagem de Deus" (2Co 4.4); "Este é a imagem do Deus invisível" (Cl. 1.15). Em Jesus vemos a Semelhança humana de Deus como ela foi originalmente concebida, e deve para nos ser motivo de alegria o fato de ter Deus nos predestinado a ser conforme a imagem de seu Filho" (Rm 8.29; 1Co. 15.49): "Quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele" (1Jo 3.2).


TRICOTOMIA E DICOTOMIA

De quantas partes compõem-se o homem? Todos concordam que temos um corpo físico. A maioria das pessoas (tanto cristãos quanto não cristãos) sentem que também tem uma parte imaterial - uma "alma" que sobreviverá a morte do corpo.
Mas aqui termina a concordância. Algumas pessoas crêem que, além do "corpo" e da "alma", temos uma terceira parte, "espírito" que se relaciona mais diretamente com Deus. A concepção de que o homem é reconstituído em três partes (corpo, alma e espírito) chama-se tricotomia. Embora essa seja uma idéia comum no ensino bíblico e evangélico popular, hoje poucos estudiosos a defendem. Segundo muitos tricotomistas, a alma do homem aborda o seu intelecto, as suas emoções e a sua vontade. Eles sustentam que todas as pessoas têm alma, e que os diferentes elementos da alma podem servir a Deus ou ceder ao pecado. Argumentam que o espírito do homem é uma faculdade humana superior, que surge quando a pessoa torna-se cristã (Romanos 8-10: "sei, porém, que Cristo está em vós, o corpo, na verdade, está morto por causa do pecado, mas o espírito de vida, por causa da justiça"). O espírito de uma pessoa seria aquela parte dela que mais diretamente adora e ora à Deus (João 4.24, Filipenses 3.3).
Outros dizem que o Espírito não é uma parte distinta do homem, mas simplesmente outra palavra que exprime a alma, e que ambos os termos são usados indistintamente nas Escrituras para falar da parte material do homem, a parte que sobrevive após a morte do corpo. A idéia de que o homem é composto de duas partes (corpo e alma/espírito) chama-se dicotomia. Aqueles que sustentam essa idéia muitas vezes admitem que as Escrituras usam a palavra espiritual mais freqüentemente com referência a nossa relação com Deus, mas que esse uso não é uniforme, e que a palavra é também usada em todos os sentidos em que se pode usar espírito.


ARGUMENTOS EM FAVOR DA TRICOTOMIA

Os que adotam a oposição tricotomista, buscam apoio em várias passagens das Escrituras. Tessalonicenses 5.23 - Hebreus 4.12 - 1 Coríntios 2.14-3.4-1 - 1 Coríntios 14.14.
O argumento da experiência pessoal. Muitos tricotomistas dizem que têm uma percepção espiritual, uma consciência espiritual da presença de Deus, que os afeta de modo que eles sabem ser diferentes do pensamento comum e também das emoções. Perguntam eles: "se eu não tenho um espírito distinto dos meus pensamentos e das minhas emoções, então o que exatamente é isso que sinto ser diferente dos meus pensamentos e das minhas emoções, ao que só posso descrever como adoração a Deus em espírito, como percepção da sua presença no meu espírito? Porventura não há algo em minha maior do que meramente meu intelecto, minhas emoções e minha vontade, e não deve isso chama-se espírito?
É nosso espírito que nos faz diferentes dos animais. Alguns tricotomistas argumentam que homens e animais tem alma, mas sustentam que a presença do espírito é que nos faz diferentes dos animais.
O espírito é aquilo que recebe vida na regeneração. Os tricotomistas também afirmam que, quando nos tornamos cristãos, nosso espírito recebe vida. Romanos 8:10.


A ORIGEM DA ALMA

Duas teses são comuns na história da igreja.
O criacionismo e a concepção de que Deus cria uma nova alma para cada pessoa e envia ao corpo da pessoa em algum momento entre a concepção e o nascimento.
O traducionismo, por outro lado, sustenta que a alma e o corpo da criança são herdados dos pais no momento da concepção.
O pré-existencialismo, preconiza que a alma das pessoas existem no céu muito antes dos corpos serem concebidos no ventre das mães, e que Deus depois tras a alma a terra, unindo-a ao corpo do bebê enquanto ele se desenvolve no útero.

A favor do traducionismo pode-se argumentar que Deus criou o homem à sua própria imagem (Gênesis 1.27), e que essa semelhança marca a incrível capacidade de criar outros seres humanos como nós. Portanto, assim como todos os animais e plantas geram descendentes segundo a sua espécie (Gênesis 1.24), também Adão e Eva foram capazes de gerar filhos semelhantes a si, com uma natureza espiritual além do corpo físico. Isso implicaria que os espíritos ou almas dos filhos de Adão e Eva derivar-se-iam do próprio primeiro casal. Além disso, as Escrituras às vezes falam que os descendentes de algum modo se encontram presentes no corpo de alguém de geração anterior; o autor de Hebreus, por exemplo, diz que quando Melquisedeque encontrou Abraão, Levi ainda estava no corpo do seu antepassado (Hebreus 7.10). Por fim, o tradicionismo poderia explicar como os pecados dos pais passam aos filhos sem que Deus se torne diretamente responsável pela criação de uma alma pecaminosa, dotada de uma inclinação que os levem a pecar.

Entretanto, os argumentos bíblicos a favor do criacionismo parecem abordar a questão mais diretamente e oferecem uma sustentação bastante forte a favor dessa tese. Salmo 127 diz: “herança do Senhor são os filhos; o fruto do ventre, seu galardão”. Isso significa que não só alma, mas também toda pessoa da criança, incluindo seu corpo, é dádiva de Deus. Desse ângulo, parece estranho conceber que a mãe e o pai sejam somente eles responsáveis por todos os aspectos da existência do filho. Davi disse ao Senhor: "tu me teceste no seio de minha mãe" (Salmo 139.13) e Isaías afirma que Deus dá fôlego as pessoas da terra e espírito aos que andam nela" (Isaías 42.5). Zacarias fala de Deus como aquele que formou o espírito do homem dentro dele (Zacarias 12.1). O autor de Hebreus fala de Deus como pai espiritual (Hebreus 12.9). Com base nessas passagens, é difícil escapar da conclusão de que Deus é quem cria nosso espírito e alma.
Concluindo, parece difícil desprezar o testemunho bíblico a favor de que Deus cria ativamente cada alma humana, assim como ele se mostra ativo em todos os eventos da sua criação. Mas simplesmente não temos como saber, com base nas Escrituras, até que ponto ele permite o uso de causas intermediárias ou secundárias (ou seja, a herança dos pais). Portanto, não nos parece proveitoso gastar mais tempo especulando sobre essa questão.


ABORTO: OS DOIS PONTOS CRUCIAIS


A legislação sobre o assunto

O artigo 128 do Código Penal brasileiro (que é de 1940) permite o aborto quando há risco de vida para a mãe e quando a gravidez resulta de estupro. Porém, apenas sete hospitais no país faziam o aborto legal. Esse ano, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou a obrigatoriedade de o SUS (Sistema Único de Saúde) realizar o aborto nos termos da lei. O projeto, porém, permite ao médico (não ao hospital) recusar-se a fazer o aborto, por razão de consciência – um reconhecimento de que o assunto é polêmico e que envolve mais que procedimentos médicos mecânicos. Por exemplo, o ministro da Saúde, Carlos Albuquerque, disse ser contrário à lei e comparou aborto a um assassinato. Além disto, médicos podem ter uma resistência natural, pela própria formação deles (obrigação de lutar pela vida). "O juiz que autoriza o aborto é co-autor do crime. Isso fere o direito à vida", disse o desembargador José Geraldo Fonseca, do Tribunal de Justiça de São Paulo, em entrevista ao jornal Estado de São Paulo (22/09/97). Segundo ele, o artigo 128 do Código Penal não autoriza o aborto nesses casos, mas apenas não prevê pena para quem o pratica. No momento, existem projetos de ampliar a lei, garantindo o aborto também no caso de malformação do feto, com pouca possibilidade de vida após o parto.


O ENSINO BÍBLICO

O assunto é particularmente agudo para os cristãos comprometidos com a Palavra de Deus. É verdade que não há um preceito legal na Bíblia proibindo diretamente o aborto, como "Não abortarás". Mas a razão é clara. Era tão inconcebível que uma mulher israelita desejasse um aborto que não havia necessidade de proibi-lo explicitamente na lei de Moisés. Crianças eram consideradas como um presente ou herança de Deus (Gn. 33.5; Sl. 113.9; 127.3). Era Deus quem abria a madre e permitia a gravidez (Gn. 29.33; 30.22; 1 Sm. 1.19-20). Não ter filhos era considerado uma maldição, já que o nome de família do marido não poderia ser perpetuado (Dt. 25.6; Rt. 4.5). O aborto era algo tão contrário à mentalidade israelita que bastava um mandamento genérico, "Não matarás" (Ex. 20.13). Mas os tempos mudaram. A sociedade ocidental moderna vê filhos como empecilho à concretização do sonho de realização pessoal do casal, da mulher em especial, de ter uma boa posição financeira, de aproveitar a vida, de ter lazer, e de trabalhar. A Igreja, entretanto, deve guiar-se pela Palavra de Deus, e não pela ética da sociedade onde está inserida.


A HUMANIDADE DO FETO

Há dois pontos cruciais em torno dos quais gira as questões éticas e morais relacionadas com o aborto provocado. O primeiro é quanto à humanidade do feto. Esse ponto tem a ver com a resposta à pergunta: quando é que, no processo de concepção, gestação e nascimento, o embrião se torna um ser humano, uma pessoa, adquirindo assim o direito à vida? Muitos que são a favor do aborto argumentam que o embrião (e depois o feto), só se torna um ser humano após determinado período de gestação, antes do qual abortar não seria assassinato. Por exemplo, o aborto é permitido na Inglaterra até 7 meses de gestação. Outros são mais radicais. Em 1973 a Suprema Corte dos Estados Unidos passou uma lei permitindo o aborto, argumentando que uma criança não nascida não é uma pessoa no sentido pleno do termo, e portanto, não tem direito constitucional à vida, liberdade e propriedades. Entretanto, muitos biólogos, geneticistas e médicos concordam que a vida biológica inicia-se desde a concepção. As Escrituras confirmam este conceito ensinando que Deus considera sagrada vida de crianças não nascidas. Veja, por exemplo, Ex. 4.11; 21.21-25; Jó 10.8-12; Sl. 139.13-16; Jr. 1.5; Mt. 1.18; e Lc. 1.39-44. Apesar de algumas dessas passagens terem pontos de difícil interpretação, não é difícil de ver que a Bíblia ensina que o corpo, a vida e as faculdades morais do homem se originam simultaneamente na concepção.Os Pais da Igreja, que vieram logo após os apóstolos, reconheceram esta verdade, como aparece claramente nos escritos de Tertuliano, Jerônimo, Agostinho, Clemente de Alexandria e outros. No Império Romano pagão, o aborto era praticado livremente, mas os cristãos se posicionaram contra a prática. Em 314 o concílio de Ancira (moderna Ankara) decretou que deveriam ser excluídos da ceia do Senhor durante 10 anos todos os que procurassem provocar o aborto ou fizesse drogas para provocá-lo. Anteriormente, o sínodo de Elvira (305-306) havia excluído até a morte os que praticassem tais coisas. Assim, a evidência biológica e bíblica é que crianças não nascidas são seres humanos, são pessoas, e que matá-las é assassinato.


A SANTIDADE DA VIDA

O segundo ponto tem a ver com a santidade da vida. Ainda que as crianças fossem reconhecidas como seres humanos, como pessoas, antes de nascer, ainda assim suas vidas estariam ameaçadas pelo aborto. Vivemos em uma sociedade que perdeu o conceito da santidade da vida. O conceito bíblico de que o homem é uma criatura especial, feito à imagem de Deus, diferente de todas as demais formas de vida, e que possui uma alma imortal, tem sido substituído pelo conceito humanista do evolucionismo, que vê o homem simplesmente como uma espécie a mais, o Homo sapiens, sem nada que realmente o faça distinto das demais espécies. A vida humana perdeu seu valor. O direito à continuar existindo não é mais determinado pelo alto valor que se dava ao homem por ser feito à imagem de Deus, mas por fatores financeiros, sociológicos e de conveniência pessoal, geralmente utilitaristas e egoístas. Em São Paulo, por exemplo, um médico declarou "Faço aborto com o mesmo respeito com que faço uma cesárea. É um procedimento tão ético como uma cauterização". E perguntado se faria aborto em sua filha, respondeu: "Faria, se ela considerasse a gravidez inoportuna por algum motivo. Eu mesmo já fiz sete abortos de namoradas minhas que não podiam sustentar a gravidez" (A Folha de São Paulo, 29 de agosto de 1997).


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esses pontos devem ser encarados por todos os cristãos. Evidentemente, existem situações complexas e difíceis, como no caso da gravidez de risco e do estupro. Meu ponto é que as soluções sempre devem ser a favor da vida. C. Everett Koop, ex-cirurgião geral dos Estados Unidos, escreveu: "Nos meus 36 anos de cirurgia pediátrica, nunca vi um caso em que o aborto fosse a única saída para que a mãe sobrevivesse". Sua prática nestes casos raros era provocar o nascimento prematuro da criança e dar todas as condições para sua sobrevivência. Ao mesmo tempo, é preciso que a Igreja se compadeça e auxilie os cristãos que se vêem diante deste terrível dilema. Condenação não irá substituir orientação, apoio e acompanhamento. A dor, a revolta e o sofrimento de quem foi estuprada não se resolverá matando o ser humano concebido em seu ventre. Por outro lado, a Igreja não pode simplesmente abandonar à sua sorte as estupradas grávidas que resolvem ter a criança. É preciso apoio, acompanhamento e orientação.
Devemos ter em nós grande dignidade como portadores da imagem de Deus. Seria bom se refletíssemos mais freqüentemente na nossa semelhança com Deus. É provável que fiquemos surpresos ao descobrir que quando o Criador do universo quis fazer algo "a sua imagem", algo mais semelhante a si do que todo o resto da criação, ele, nos criou. Essa descoberta nos da um profundo senso de dignidade e importância, pois passamos a refletir sobre a excelência de todo o restante da criação divina: o universo estrelado, a terra abundante, o mundo das plantas e dos animais e os reinos dos anjos são admiráveis, magníficos mesmo. Mas nós somos mais semelhantes ao nosso Criador do que qualquer dessas coisas. Somos a culminância da obra criadora infinitamente sabia e hábil de Deus.
Se algum dia negarmos nossa posição singular na criação como únicos portadores da imagem de Deus, logo passaremos a depreciar o valor da vida humana, tenderemos a enxergar os seres humanos meramente como uma forma animal superior e começaremos a tratar os outros assim. Também perderemos muito do nosso senso de significado na vida.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

- Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filosofia – R.N. Champlin, Ph.D. J.M. Bentes – Editora Candeia.
- Teologia Sistemática – Wayne Grudem – Editora Vida nova.
http://www.chamada.com.br/.


UMA BREVE ANÁLISE SOBRE O SÍNODO DE DORT

 

Os cristãos, em todas as partes do mundo, estão celebrando este ano [1995] o 350º. aniversário da convocação do Sínodo de Dort. Para a maioria das pessoas o nome nem é mesmo familiar, talvez por ter alguma relação com o rio Maas e a provinciana cidade holandesa de Dort. Na mente daqueles que já o ouviram, muito freqüentemente o que restou é algo do ódio há tanto relacionado com o Sínodo, em razão das calúnias de seus inimigos. Não obstante, quando a Reforma era ainda jovem e os homens amavam ardentemente as doutrinas da graça, o nome de Dort era famoso em todo o mundo protestante. William Cunningham vai longe em dizer: “O Sínodo de Dort, representando quase todas as igrejas reformadas, e contendo uma grande proporção dos teólogos do mais alto nível, erudição e caráter, tem direito a maior medida de respeito e deferência do que qualquer outro concílio registrado na história da Igreja” [Os Reformadores e a Teologia da Reforma, p. 367]. Isto é de fato um grande elogio! Mas há muitos grandes nomes na história que em algum tempo significaram muito, mas que agora não têm nenhum significado prático. Então, alguém poderia perguntar por que deveríamos estar preocupados com uma assembléia eclesiástica esquecida pela maioria dos homens há tanto tempo, e que, à primeira vista, parece não ter qualquer significado contemporâneo?
Em primeiro lugar o Sínodo de Dort é de peculiar interesse histórico para a Grã-Bretanha, pois – embora fosse principalmente um ajuntamento holandês – o rei James I foi, na verdade, responsável em parte por sua existência! Nos anos anteriores a 1618-19 ele somou sua forte influência a dos homens na Holanda que clamavam pela convocação de um Sínodo nacional, para pôr fim às controvérsias teológicas que estavam perturbando a paz, e mesmo pondo em risco a sobrevivência dos Paises Baixos. Ainda mais, James escolheu vigorosamente os representantes calvinistas contra os oponentes arminianos. E, quando um tal Vortius, homem justamente suspeito como de opinião sociniana [unitarino], foi indicado para susbstituir Arminius na Universidade de Leiden, após sua morte, James notificou ao Estado Geral da Holanda que retiraria seu embaixador se Vortius não fosse demitido imediatamente. O Eleitor do Palatinado era genro de James e acrescentou sua própria influência à do rei inglês no clamor por um Sínodo. Quando chegou o momento, James indicou cinco representantes para o Sínodo, todos do partido episcopal, que, juntamente com outros teólogos estrangeiros, teriam prerrogativas de participação nas deliberações do Sínodo além do direito de voto. Eram eles George Carleton, então bispo de Llandaff e posteriormente de Chichester; Joseph Hall, posterior e sucessivamente bispo de Exeter e Norwich; John Davenant, depois bispo de Salisbury; Samuel Ward, o celebrado erudito e mestre de Sidney Sussex College, Cambridge; e Walter Balcahqual, um escocês, capelão do rei e depois deão de Rochester. Hall adoeceu após alguns dias e ficou impossibilitado de dar continuidade às suas responsabilidades, mas foi substituído por Thomas Goad, capelão do arcebispo da Cantuária. É importante lembrar que estes homens não eram representantes do partido puritano da Igreja da Inglaterra. O fato de que o bispo Carleton estar preparado para participar como membro ordinário [embora respeita] de um Sínodo convocado nos moldes da reforma e presidido por um mero presbítero, diz muito sobre a posição do governo episcopal que prevalecia na Inglaterra, um aspecto que seria em breve alterado radicalmente pela influência de homens como William Laud com suas enfatuadas noções não-protestantes do direito divino do episcopado. Também é significativo que todos estes ingleses, um prelado e dois futuros prelados assinaram os Cânones do Sínodo de Dort. Era de se esperar tal profissão de calvinismo dos herdeiros de Cartwright e Perkins; todos sabem que eles faziam coro com seus companheiros do continente. Mas aqueles clérigos, insuspeitos de puritanismo, são prova suficiente de que o calvinismo continuava a ser a teologia predominante na Igreja da Inglaterra durante o reinado de James I. Foi apenas sob o domínio de seu filho Charles I que começou a triste decadência no fervor, e que mais tarde trouxe conseqüências trágicas.
O Sínodo de Dort é também de grande importância por razões religiosas. “A controvérsia arminiana”, escreveu Philip Schaff, “é a mais importante que ocorreu dentro da Igreja Reformada”. Pode-se acrescentar que o sínodo que pôs fim à controvérsia, definiu claramente assuntos que sempre perturbaram a Igreja e continuam a perturbá-la ainda hoje. Para entender-se o que ocorreu nos Paises Baixos, nas duas primeiras décadas do século dezessete, é necessário retroceder até o próprio Arminius e à origem da luta associada ao seu nome. James Arminius [latinizado de Jacob Hermanson] nasceu em 1560 e estudou em Leiden e Genebra na gestão de Teodoro Beza, sucessor de Calvino. Em 1588 tornou-se um dos ministros de Amsterdam, onde realmente começou o problema por causa da sua pregação relacionada particularmente com a exposição de Romanos 7. Os homens suspeitaram que ele estava saindo da confissão reformada, e houve considerável agitação na cidade por causa disso. Em 1630 foi indicado como professor de teologia em Leiden, em substituição ao célebre Franciscus Gomarus, um dos grandes teólogos da época, e assim ficou claro que Arminius tinha sérias objeções contra a doutrina da Igreja. Entretanto, agora, como antes em Amsterdam, mesmo tendo jurado não contradizer em seus ensinamentos a Confissão e aderir completamente a ela em suas lições públicas, dava, todavia, instrução em particular a certos estudantes selecionados, falando mais livremente de suas insatisfações e dúvidas. Seu sucesso em fazer prevalecer sobre os jovens seu próprio ponto de vista cedo tornou-se evidente quando estes se apresentaram ao exame dos Presbitérios para admissão no ministério.
Arminius morreu em 1609 em meio à controvérsia, mas seu manto logo foi tomado por Johannes Uytenbogaert, o pregador da corte, e Simon Episcopus, seu sucessor na universidade. Sob a liderança deles os arminianos, em 1610, prepararam uma representação (Remonstrance) [desde então passaram a ser chamados de os remonstrantes] na qual em princípio rejeitavam certas posições defendidas pelos calvinistas. Esta representação era formulada de tal maneira que oferecia mais uma caricatura do que uma representação correta da doutrina reformada; e prosseguiam asseverando em cinco posições [os cinco artigos do arminianismo] seus próprios pontos de vista; i.é, eleição condicional à presciência da fé; expiação universal [que Cristo “morreu por todos e por cada um, de forma que ele concedeu reconciliação e perdão de pecados a todos através da morte na cruz”]; a necessidade de regeneração para que o homem seja salvo [mas, como apareceu mais tarde, entendido de tal maneira que subestimava seriamente a depravação da natureza humana]; a resistibilidade da graça [“mas quanto ao modo desta graça, ela não é irresistível”]; e a incerteza da perseverança dos crentes. Os calvinistas responderam com a contra-remonstrance [desde então o nome contra-remonstrantes] com sete artigos reafirmando o ensinamento das confissões reformadas com respeito à doutrina da graça. A conferência teve lugar em Hague em 1611, mas não chegou a nenhuma acordo.
Os anos seguintes testemunharam a exacerbação da controvérsia, que agora se espalhava velozmente pelo país e era marcada pela demanda crescente, da parte dos calvinistas, da convocação de um sínodo geral para pôr fim à disputa. Embora a Constituição da Igreja determinasse um Sínodo, no mínimo a cada três anos, nenhum havia sido permitido desde 1586. John Van Olden Barneveldt, Grande Pensionário da Holanda e o grande homem do momento, apoiava os arminianos e era de posicionamento erastiano quanto à relação entre Igreja e o Estado. Em seu ponto de vista e dos remonstrantes, que derivavam suas forças de autoridades políticas, o magistrado civil exercia autoridade em assuntos eclesiásticos. O príncipe Mauricio, filho de William, o Taciturno, e stadtholder hereditário, permaneceu neutro até 1616, quando começou abertamente a tomar o partido dos calvinistas e, nos idos do verão de 1617, estava participando publicamente do culto com a congregação reformada da capital. No mesmo ano, executou um bem sucedido golpe de estado contra Barneveldt e determinou, finalmente, a convocação de um sínodo da igreja holandesa. Este entretanto foi um sínodo único na história do protestantismo pois, pela pressão de James I, teólogos estrangeiros foram convidados a participar. Convites foram enviados para todas as igrejas reformadas da Europa, e realmente vieram delegados da Inglaterra, do Palatinado, Hesse, Zurich, Berne, Basel, Schaffhausen, Genebra, Bremen e Emden. A França não se fez representar. Os representantes designados, Pierre du Moulin e André Rivet, dois dos teólogos mais célebres da época, foram proibidos de deixar o país pelo rei da França. Mas assim mesmo, a Igreja reformada francesa aprovou os Cânones de Dort e fê-los obrigatórios aos seus ministros em dois sínodos gerais separados em 1620 e também em 1623. Nem a Escócia foi incluída – muito estranho, desde que a igreja de John Knox pertencia ao grupo reformado internacional. Mas, deve-se lembrar que o mesmo rei que indicou os episcopais ingleses que participaram do Sínodo de Dort, estava, nestes mesmos anos, engajado em submeter a igreja do norte, do seu reino, a um jugo hierárquico completamente desprezível e indesejável; por isso a igreja escocesa não ficou livre para participar.
Foi uma extraordinária assembléia. Um antigo escritor disse dela o seguinte: “os membros deste sínodo formavam uma constelação dos melhores e mais eruditos teólogos que já se congregaram num concílio desde a dispersão dos apóstolos; salvo se excetuarmos a convocação imperial de Nicéia no quarto século” [Biographia Evangélica II, p. 456]. O concílio incluía 56 ministros e presbíteros regentes das igrejas holandesas, 5 professores de teologia e 26 teólogos estrangeiros, além de 18 comissários políticos [não-membros do sínodo] que iriam supervisionar o processo e dar informações ao Estado Geral. Para se avaliar o peso da assembléia, basta citarem-se alguns nomes. Gomarus estava lá, sucessivamente professor em Leiden, Saumur e agora em Groningen; Lubbertus, de Franeker; Bogerman, o grande ministro de Leeuwaarden que estudou em diversas universidades continentais e então em Oxford e Cambridge [sob Reynolds e Perkins]; Diodati, o italiano que ensinava em Genebra; o jovem Voetius, que não havia ainda iniciado a estupenda carreira acadêmica que o faria, talvez, o mais influente teólogo da Europa; e Scultetus, Polyander, Lydius, Alting, Hommius, Triglandius, Meyer. Podia-se prosseguir referindo-se mais e mais nomes. Interessante é que o grande puritano William Ames, que por causa de seus princípios fora constrangido a fugir da Inglaterra, foi designado por Bogerman, presidente do sínodo, como seu secretário particular, para grande descontentamento dos delegados ingleses. Ames exerceria considerável influência nos bastidores.
O Sínodo começou em 13 de novembro, com culto solene em holandês na Grande Igreja e em francês naquela que fora antes a igreja dos agostinianos. Após o que, ocorreram as sessões, 154 ao todo, no Kloveniersdoelen , uma espécie de armazém arsenal que era aquecido durante todo o inverno por uma grande lareira. Mas, como proteção extra contra o frio e a umidade de que muitos se queixavam, cada delegado recebeu um stoofje , um pequeno braseiro para ser colocado sob os pés. O principal assunto em pauta era, é claro, a controvérsia arminiana, e treze dos remonstrantes foram convocados diante do Sínodo para prestarem contas de suas opiniões. Após alguma demora chegaram finalmente em 6 de dezembro, e até 14 de janeiro o Sínodo engajou-se na vã tentativa de extrair deles uma declaração clara de seus ensinamentos. Os arminianos – Episcopus à frente deles como presidente de uma espécie de contra-sínodo – utilizaram de toda engenhosidade para evitarem qualquer declaração deste tipo, exigiram que fosse seguida sua própria pauta de assuntos em lugar da do Sínodo, praticaram evasivas, táticas de retardamento e obstruções, caluniaram o Estado Geral implicando até mesmo o próprio príncipe Mauricio, e rejeitaram a autoridade do Sínodo em julgá-los; isto a despeito do fato de ser legalmente um Sínodo da Igreja em que ocupavam cargos, à qual confessavam pertencer, e a cuja disciplina estavam obrigados a se submeter em virtude de suas ordenanças e votos!
Após um mês de esforços infrutíferos para se prosseguir com o assunto em pauta, tempo durante o qual Bogerman, o presidente, se conduziu com tal paciência e calma contida, que alguns dos seus colegas a achavam excessiva, em face à tamanha obstinação; não houve alternativa senão despedir Episcopus e seus companheiros. Os historiadores acusam Bogerman por sua conduta no dia fatídico de 14 de janeiro, quando por um momento pareceu ter perdido o auto-controle, mas sua exasperação é compreensível. Referindo-se às distorções deliberadas, e até mesmo falsidades com que os arminianos trataram o Sínodo, ele vociferou: “Vocês estão sendo mandados embora. Vão! Começaram com mentiras e terminaram com mentiras”. E uma vez mais gritou: “Ide! Ide!”. Após este fato o trabalho prosseguiu, fazendo uso, agora, dos escritos e não dos próprios remonstrantes, e o Sínodo formulou em cinco capítulos e noventa e três artigos, os famosos Cânones de Dort, que foram assinados por todos os delegados em 23 de abril e promulgados solenemente na Grande Igreja em 6 de maio de 1619, diante de numerosa congregação. Três dias mais tarde, após seis meses de trabalho exaustivo, os teólogos estrangeiros partiram e os teólogos holandeses permaneceram para 22 sessões adicionais devotadas, em sua maioria, à preparação de uma nova liturgia e ordem eclesiásticas.
Falou-se muito sobre o “perseguidor sínodo de Dort” e houve muita distorção propositada quanto a ele. Por isso, é que na Inglaterra uma versão dos Cânones permaneceu amplamente em voga até 1804, versão esta que tinha o peculiar pedigree de ter sido produzida por um tal de Daniel Tilenus, que era na verdade um remonstrante. Esta versão que corria como uma “sinopse conveniente” era na verdade uma corrupção deliberada dos Cânones. Afirma, por exemplo, que Deus elegeu para salvação “um pequeno número de homens” e predestinou o resto para condenação “sem qualquer consideração quanto à infidelidade e impiedade deles”. Isto era simplesmente uma reprodução da caricatura arminiana original da posição calvinista na Remonstrance de 1610. Os Cânones não fazem na verdade tal afirmação quanto à pequenez do número dos eleitos, exceto para rejeitar a acusação arminiana, para efeito de conclusão, e insiste em estabelecer a conexão entre o decreto da reprovação e o fato do pecado e desobediência do homem: quanto aos preteridos, “Deus (...) decretou deixá-los na miséria comum na qual eles mesmos se precipitaram intencionalmente (...) não apenas por causa de sua descrença, mas também por todos seus outros pecados” [I.7,15].
Quanto à perseguição, deveria ser lembrado que a Igreja Holandesa estava sujeita a duas ordens confessionais: a Confissão Belga e o Catecismo de Heidelberg. Os arminianos, dessa forma, enquanto que sujeitos aos votos destas declarações da fé reformada, estavam advogando a subversão delas. E foram eles, nota bene , nos anos anteriores ao Sínodo provaram ser intolerantes com os homens, com respeito ao apoio às doutrinas da Igreja. Em muitas ocasiões ministros depostos pela Igreja por heresia eram mantidos no cargo pelos magistrados; e os ministros fiéis apoiados pela Igreja eram depostos por eles. Na verdade, os calvinistas eram privados do uso de edifícios, postos à parte, como seu próprio local de culto, e forçados a se reunirem onde quer que pudessem, e nem assim eram deixados em paz. Destarte a acusação de perseguição pôde escassamente ser feita, com justiça, pelos remonstrantes pois eles mesmos, quando podiam, se favoreciam dela. O resultado de Dort não foi a supressão de todas as religiões com exceção da reformada. Diferentemente de outros países da Europa, a Holanda já era o lar de pessoas oprimidas. Em 1609, os Pais Peregrinos tomaram o rumo de Leiden, e luteranos, anabatistas e mesmo católicos romanos eram tolerados, embora que confinados a locais privativos a seu próprio culto. É verdade que, após o Sínodo ter-se reunido, muitos pregadores que não se adequaram foram depostos. É verdade também que mesmo no Sínodo os arminianos eram tratados não como iguais – se bem que tivessem a pretensão de serem uma espécie de contra-sínodo – mas como aqueles que foram convocados para prestarem contas de si mesmos e para serem julgados. Mas isso nada tem a ver com a questão da tolerância como tal; é antes a questão de se a Igreja tem ou não o direito de obrigar sua própria confissão de fé e insistir em sua prerrogativa de privar de seus cargos os que se desviram daquela confissão e ensinavam o erro e não a verdade. A ação do Sínodo era disciplinar, voltada para membros e oficiais da Igreja que se tinham envolvido em heresias e tentaram mudar a confissão da Igreja, para ajustá-la às suas próprias opiniões. Apenas aqueles que são por si mesmos cautelosos quanto a adesão de estatutos confessionais, ou que já viveram sob perjúrio, havendo prometido uma coisa apenas para crer em outra, questionaram o direito do Sínodo de uma igreja de agir resolutamente em tais casos.
É impossível aqui aprofundarmo-nos nas questões teológicas inerentes à controvérsia arminiana. Para isso os leitores devem recorrer ao volume recentemente publicado pela Reformed Fellowship , de Grand Rapids, e editado pelo Dr. P. Y. de Jong, sob o título Crisis in the Reformed Churches (Crise nas Igrejas Reformadas), e também à magistral discussão de William Cunningham no volume II de sua Historical Theology (Teologia Histórica). A comtrovérsia dizia respeito às diferentes conceituações do homem e de Deus. Os arminianos representavam o reavivamento das doutrinas semi-pelagianas que havia tanto tempo flagelado a Igreja cristã. Embora o próprio Arminius não fosse um não-evangélico, entretanto a história subseqüente do movimento demonstra claramente que, quando a queda e suas conseqüências totais para o ser humano como um todo não é levada suficientemente a sério, e quando a salvação não é compreendida como total e completamente pela graça divina, então o resultado é inevitavelmente o racionalismo e coisa pior. Os teólogos de Dort não estavam, em primeiro lugar, preocupados com questões escolásticas não relacionadas com a vida. Para eles a controvérsia não era acadêmica em nenhum sentido. Era prática em último caso à vista deles, como na era de Atanásio, mil e duzentos anos antes em sua luta contra o arianismo, o problema principal era mesmo a salvação. Se os arminianos tivessem prevalecido e suas doutrinas introduzidas na Igreja, o resultado final seria destrutivo para a doutrina cristã da salvação. A partir dos Cânones – o caráter incondicional e gracioso da eleição; a expiação de Cristo limitada em seu desígnio e amplitude; a depravação total do homem; a graça irresistível; e a perseverança dos santos – foram todos, em resposta aos cinco artigos da remonstrance, com a intenção de estabelecer clara e inequivocamente o absoluto e gracioso caráter da salvação que “não depende de quem quer, ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia” (Rm 9.16).
Qual é então a importância atual de Dort? É tão somente esta: o erro arminiano, embora travestido sob um nome do século dezesseis, é tão antigo quanto o homem e ressurge sempre e sempre, freqüentemente sob novas formas, até mesmo com vestes evangélicas [como mesmo no caso de Arminius]. Encontra-se agora entre aqueles que, embora professem doutrina bíblica, ainda insistem na capacidade do homem de escolher a Deus por si mesmos. É também corrente, em forma muito mais radical, entre um grande número de teólogos não-ortodoxos e liberais que concentram seu raciocínio na antropologia e substituem a busca da Reforma por um Deus gracioso, pela busca de um próximo gracioso. Encontra-se onde quer que os homens não se sujeitem com humildade, obediência e fé ao Deus das Escrituras e não atribuem a Ele, não apenas a iniciativa, mas também todos os meios para o cumprimento da salvação em toda parte. A verdade fundamental que Dort levantou bem alto é a verdade na qual a Reforma na linha de Agostinho e mesmo a Palavra de Deus permanecem firmemente: Soli Deo gloria !


Fonte: Jornal Os Puritanos (Ano III – No. 2 – Março/Abril – 1995), pp. 27-30.


MENSAGEM DA CRUZ: A PREGAÇÃO QUE GANHOU 3.000 ALMAS PARA CRISTO.


Uma palavra de edificação e benção para sua vida e da sua família.